sábado, 24 de dezembro de 2011

O Trabalho como atividade transcendental. A visão reformada acerca do trabalho a partir do Salmo 127.

O trabalho não deve ser escravidão, irracionalidade, cujo fim é sempre ele mesmo. Ele não pode servir apenas como o 'atravessador' do lucro entre aquele que trabalha e aquele que lhe paga pelo serviço. Se a concepção que se forma do trabalho for a de retorno imediato e rentável, quanto mais dele se depender, o trabalho se tornará serviço, emprego, mas nunca atividade satisfatória.


A palavra Trabalho na língua latina é 'labore' e/ou conforme outros filólogos, 'tripalium'. Ambas têm diferentes apontamentos cuja semântica infere a idéia de: labor, sofrimento, angústia, tortura (no caso dos escravos), entre outros. É com esta semântica, designação, passou não só a apontar o trabalho não só como instrumento de tortura, mas também, estendeu-se às atividades físicas, produtivas relativas aos trabalhadores braçais.


A visão evangélica aplica à terminologia de trabalho dupla noção: (1)- Antes da queda- o trabalho é feito alegre e sem fadiga; (2) depois do pecado de Adão- o trabalho torna-se fadigoso, necessário para a manutenção do pão diário. Logo, a partir de Adão, o trabalho tornou-se “traço específico da raça humana”. Agora, o trabalho seria, portanto, a responsabilidade de cuidado e manutenção da ordem estabelecida por Deus.


Mas, alguém poderia questionar a validade da leitura do Salmo 127 para uma exposição acerca do trabalho. Um olhar atento às palavras de Salomão nos revelará a forma com a qual a noção de trabalho, ou pelo menos, o trabalhador, é pensado e orientado em suas atividades e planejamentos. Elencando-se por entre os versículos é seguro afirmar que o trabalho visa a realização de, pelo menos, três bases da sociedade/indivíduo: (1)-construção, (2)- segurança, (3)-manutenção. Tais bases sustentam a vida em inúmeras dimensões existenciais (quer emocional, educacional, econômicas, etc). E isto é importante saber, pois logo no primeiro versículo, o termo 'casa' satisfaz diversos significados, podendo referir-se à construção civil, lar, família, clã, comunidade (como era vista a nação de Israel).O trabalho aqui ainda não visa a idéia de vida contemplativa, labor intelectual. Ainda se presa o esforço, a atividade física, ativa como trabalho. É basicamente no século XVIII que o trabalho será visto, também, como atividade intelectual e técnica.


Por se tratar da Palavra de Deus, não é correta esperar que os ensinos dela retirados habitem somente à questões materiais, isto é, dia-dia. Este salmo não pode ser considerado separadamente do salmo 128. Tratam-se dos salmos de peregrinação ou degraus. Eram usados quando o povo ia ao templo ou relacionados à libertação do cativeiro. De qualquer modo, é significativo o modo em que os salmos envolvem a vida com Deus e a alegria da vida, os afazeres diários, tristezas e sofrimentos do homem relacionados ao trabalho e espectativas deste.


Com o devido cuidado à sua interpretação e contexto, a focar a realidade do mundo contemporâneo, azafamado e futilizado, este salmo não deixa de ser relevante. Permite-se depreender dele três ensinamentos aplicáveis a qualquer pessoa (muito mais aos crentes):

I- Deus dá ao homem a destreza para produzir e conservar aquilo que produziu (1,2):
Uma das características intrínsecas do trabalho é a capacidade de modificar, produzir e manter aquilo que o labor gerou. Conforme Abbagnano, o trabalho é a “atividade cujo fim é utilizar as coisas naturais e modificar o ambiente e satisfazer às necessidades humanas. Por isso o conceito de trabalho implica: dependência do homem em relação à natureza, no que se refere à sua vida e aos seus interesses.”


Contudo, trabalhador não só modifica o seu meio e sociedade, mas a si próprio. Se houver dedicação esmerada no labor, a cada fazenda haverá uma descoberta, um aprendizado.


Notemos o que diz Abbagnano: “Só na satisfação de suas necessidades através do trabalho é que o homem é realmente homem, porque assim se educa tanto teoricamente, por meio dos conhecimentos que o trabalho exige, quanto na prática, ao habituar-se à ocupação [...].”


Descobre-se que no trabalho há um certo sabor de transcendência, pois o que se busca no suor que escorre a face não é simplesmente o pão, mas o fim daquilo em que o homem se propôs a construir. Se for trabalho manual, visa-se a sua perfeição; se “teórico”, espera-se a realização perfeita do pensar não-contraditório.


Hegel considerava o trabalho como mediação entre o homem e o seu mundo; isso porque, diferentemente dos animais, o homem não consome de imediato o produto natural, mas elabora de maneiras diferentes e para os fins mais diversos a matéria fornecida pela natureza, conferindo-lhe assim valor e conformidade com o fim a que se destina (Filosofia do Direito, §196).


Três proposições surgem nos dois primeiros versículos:
1- O trabalho não deve ser atividade desenfreada, antes, a certeza do cuidado divino:
A empresa humana é vã, infrutífera (v.1). A possibilidade de se trabalhar em vão dá a insegurança. Daí, a difícil tarefa de produzir e conservar aquilo que produziu.


2- Há a certeza do pão, mas foge-se a certeza do avanço (Sl.90:10;Ecl.1:3;3:13;5:18,19):
Tem-se a casa e a cidade, o pedreiro e o vigia que trabalham, mas não são auto-suficientes na tarefa. Além do mais, o risco de tornar o trabalho inútil é iminente (Mt.6:19,20). Todo o trabalho deve finalizar-se em satisfação, contemplação!


Observe que a cidade cresce, paredes são levantadas. Há riquezas que precisam ser vigiadas, mas Deus não parece ver estas manifestações tangíveis com os mesmos olhos que os homens! A satisfação do trabalho não parece vir das mãos calejadas do pedreiro, ou tampouco, dos olhos sonolentos do vigia, mas das mãos poderosas e dos olhos onipresentes de Deus (Sl.121;139).


3- Deus deve ser conhecido em toda a nossa obra:
Spourgeon nos lembra que “é vão a mão humana sem a mão de Deus. É vão o olho humano sem o olho de Deus (1,2)![1] Isto é conveniente, uma vez que, o serviço a Deus não se dá apenas sob o aspecto de um chamado ao sacerdócio. O crente tem uma vocação natural para transformar uma simples tarefa num elemento que aponta a perfeição ou a vontade divina.

Em Gênesis, capítulos 1 e 2, depois de cada obra criada, se lê: “e viu Deus que isto era bom”; isto é, perfeito para aquilo a que foi determinado. Se as coisas criadas por Deus espelham a grandeza de sua perfeição, o homem, enquanto a sua imagem, muito mais deve espelhar a beleza do Criador a partir daquilo em que forja (Icor.4:12;.Ef.6:5-9;ITm.6:1,2).


II- O sono também é o fruto do suor gerado pela fé no sustento divino (2):

O que do salmo fica exposto neste versículo é que,não é só o dinheiro ou o sonho realizado aquilo que o trabalho pode dar. O sono passa a ser uma conquista, mais do que o dinheiro ou a concretização do sonho. Sem dúvida,o sono é fruto do suor. Primeiramente, como o pagamento natural ao esforço exibido nalguma atividade; depois, pela segurança de se poder colher o fruto da semente que plantou.


Portanto,o sono deve ser o resultado de uma segurança satisfatória (Sl.4:8). O trabalho parece ser aquilo que não nos deveria roubar o sono, antes, o dar! Spourgeon em um de seus sermões chama o texto de “O sono especial dos amados.”


Mas, por que nem sempre se pode dormir satisfeito ou com a certeza de se ter o que necessita no dia seguinte? Talvez porque seja necessário considerar o trabalho não como independência, mas dependência que o homem tem de Deus.Trabalho e sono são elementos necessários ao homem. Aquele que só dorme não se alimenta do pão que brota de seu suor. Em contrapartida, quem só trabalha não se alimenta do sono (descanso) que revigora o homem. Não deve haver preguiça nem, tampouco, presunção! Deus deve ser incluído na construção dos sonhos e sociedade dos homens.


O homem trabalhador pode ter o trabalho como virtude, mas perde-a para a presunção de se ver suficientemente capaz de se sustentar e engendrar, construir o mundo pela sua própria força (Pv.21:22).


Entre os gregos, conhecia-se o mito escrito por Ésquilo, O Prometeu agrilhoado. Nesta está presente a idéia de que o fogo roubado por Prometeu e dado aos homens foi o instrumento libertador dos homens acerca de seus destinos, isto é, com o fogo, os homens descobrem ferramentas e com elas, o trabalho, o qual deu liberdade a esses homens. Agora eles mudam o seu meio e constroem o seu próprio futuro.


Contrariamente a idéia do Prometeu Agrilhoado está o Salmo 127. O trabalho não é a ferramenta que torna o homem independente de Deus, capaz de trilhar o seu próprio caminho. Em outros termos, sem Deus, o pão será sempre aquele que o diabo amassou (ainda que saboroso!).

III- O trabalho não é o consolo da ansiedade; é providência divina (2c-5):
Salomão, como rei, compreendia muito bem a necessidade do trabalho na construção de uma casa ou uma sociedade. Como rei, nada mais natural do que exigir aquela virtude que põe uma cidade acordada (Pv.13:4;19:15,24;21:25).


Para onde o autor aponta a noção de trabalho? Não para aquisição de bens materiais, mas virtudes eternas: “uma família reta é riqueza e honra suficiente.” (vv.3-5). Isto é fato no desvelo que Salomão dá à continuidade deste salmo. O trabalho transcende as dimensões senhor e escravo, patrão e empregado. O trabalho assume proporções domésticas, isto é, o homem trabalhador também tem 'tarefa' a ser feita em casa. Parece-nos que a idéia de trabalho neste texto vai para além de suor, cansaço e rugas na face castigada pelo sol ardente e noites mal dormidas. O trabalho para o salmista envolve a educação da família (filhos).


Assim como o chefe do lar educa os filhos para a vida, estes na medida em que crescem educados utilizam-se desta educação para a proteção do pai. Contudo é a dependência de Deus o lastro que conserva a unidade do lar, o alicerce da casa. Tal verdade é inerente neste salmo- o que sugere duas lições:

(A)- O trabalho não é aquilo que dará união ao lar:
Observemos que há um pai de família que pretende acordar cedo e dormir tarde para suprir as necessidades do lar.


Contudo, observemos também que, o esforço voltado à direção do labor, somente, não é aquilo que fortalece o lar. É certo que um homem trabalhador alcançará muitos feitos, mas nem sempre esses feitos corresponderão às necessidades mais exigentes que o seu suor. Tome-se por exemplo a ausência do trabalhador no lar, quando os filhos crescem rapidamente sem que se possa observar. O filho ao acordar pela manhã tem o leite e o pão, mas não tem a companhia do pai para repartir com ele (Sl.128:3).

(B)- A felicidade pode se encontrar naquilo cujo o retorno está em outro tipo de trabalho:
O salmista aponta para certos valores pouco lembrados hoje: pessoas devem ser vistas como herança, galardão (3,4) e, felicidade não significa uma meta a ser alcançada tão somente com o suor do rosto (Sl.127:5; Ec.5:12-17).


Notemos que o homem que é feliz neste texto tem nos filhos a sua herança e não nos bens materiais ou dinheiro. Há também o fato que este homem é feliz pelo elo existente entre os filhos na peleja e não porque pode construir uma casa à prova de lutas. Karl Marx afirmava que “o trabalho não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades.”


O trabalho não pode significar apenas levantar paredes de concreto ou telhados de barro. O trabalho visa a construção de lares e não de casa. Deve unir forças para a peleja e não ser o motivo da peleja!


Engels mesmo nos lembra que o trabalho distingue os homens dos animais. Estes não trabalham, apenas procuram saciar a sua necessidade imediata. Quanto ao homem, o trabalho é a ferramenta que tanto lhe sacia as necessidades físicas quanto a outros anseios, quer úteis ou fúteis. Seja qual for a dimensão desses interesses, o trabalho manifesta-se como aquilo que compete apenas ao exercício da Razão humana. "O homem [...] modifica a natureza e a obriga a servir-lhe, domina-a. E ai está a diferença que [...] resulta do trabalho.” Isto condiz com a clara ordem de Deus a Adão (Gn.1:26-31).

O trabalho não pode ser o consolo para a ansiedade (Ele em nada a diminui!). Por isso, para o salmista, o trabalho não significa a possibilidade de se sonhar acordado; antes, deve-se dormir sem medo de perder o que se sonha (Ec.5:12;Is.64:4). Muitas pessoas acabam por assimilar ao trabalho a noção de que se o fizer bem feito a ansiedade desaparecerá (Lc.12:15-21). Ledo engano. Ele, como fim em si mesmo e/ou, resposta à ansiedade em nada ajudará o ansioso. Ao que parece,este salmo aponta para a total dependência que o homem tem de Deus.


Embora pareça insinuar haver uma certa cooperação entre Deus e o homem, o Salmo aponta que toda a segurança de se receber pelo que se trabalhou é obra de Deus (1,2). Conforme salienta, novamente Champlin, É “Ele quem dá significado ao trabalho.”


Deste modo, o remédio à ansiedade não é a certeza absoluta que o trabalhador possa nutrir de que o seu suor lhe dará o pão (Sl.104:21-23), mas a certeza de que Deus dá ao trabalhador tanto o pão quanto o trabalho (Mt.6:11; Sl.104:27-30).


O salmista parece olhar hoje para dentro de muitos lares e avistar rostos cansados e sonolentos. Ele grita-nos que o trabalho sem fé é ansiedade. O labor deve ser repensado. Thomas L. Constable nos lembra que “muito do que desfrutamos não procede do trabalho duro. Muitas das melhores bênçãos da vida vêem como dons de Deus. Os filhos são uma dessas grandes bênçãos (...).”


Não dependemos de nós mesmos! Lembremos do que Paulo disse confiadamente: “eu plantei, Apolo regou, mas Deus deu o crescimento” (I Cor.3:6,7). O apóstolo sabia que todos os seus esforços lograriam êxito porque Deus é quem tem o poder de levar a fazenda do homem à sua realização.

Conclusão:


Pelo que o Salmo expõe, o trabalho deve ser considerado bem mais do que aquela atividade de suor no rosto, cujo o fim desejado é o pão. Ele exige do homem um certo aspecto de parceria, comunhão entre o ele e Deus. Isto é assim, uma vez que o suor que escorreria da face de Adão enquanto sangrava o solo espinhoso visando a dependência da improvável natureza da semente, fora decorrente da quebra da comunhão entre o homem e Deus (Gn.3:19).


Adão deveria aprender a confiar sua vida às mão de Deus (gn.2:7-17). Não nos seria isto um convite ao trabalho? Pensamos em adquirir o sucesso no trabalhado sem Deus?

[1] Notemos o que diz Abbagnano: “Só na satisfação de suas necessidades através do trabalho é que o homem é realmente homem, porque assim se educa tanto teoricamente, por meio dos conhecimentos que o trabalho exige, quanto na prática, ao habituar-se à ocupação [...].”

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